Atualizando meu livrinho Boca feliz, de 1988, onde falo pela primeira vez na médica pediatra e nutróloga Clara Brandão e seu fabuloso trabalho com a multimistura, deu saudade e fui procurar notícias dela na rede. Achei esta entrevista, de 2003, no site Responsabilidade Social. Para quem não a conhece, uma excelente oportunidade.
A nutróloga Clara Brandão, Coordenadora de Orientação Alimentar da Secretaria de Políticas de Saúde do Ministério da Saúde, trabalha há 30 anos na busca de uma infância brasileira menos desnutrida e subnutrida. Inventora da multimistura – uma farinha composta por farelo de arroz, pó de folhas verdes, de sementes e casca de ovo –, Clara é responsável pela recuperação de inúmeras crianças de todas as regiões do país. Esse poderoso concentrado de minerais e vitaminas é hoje utilizado nas mais de 20 mil comunidades atendidas pela Pastoral da Criança, que ensina famílias a enriquecerem a alimentação diária por meio da adição da farinha de multimistura. Em entrevista concedida ao RESPONSABILIDADESOCIAL.COM, Clara comenta os erros nas estratégias que hoje são usadas para combater a fome, propõem novos pontos de vista e mostra como o empresariado brasileiro pode contribuir para melhorar a situação nutricional do país e, ainda, aumentar seus lucros. Confira:
1) Responsabilidade Social – A senhora pode falar sobre como surgiu a idéia da Multimistura e um pouco da história de como foi implementada no país?
Clara Brandão – Em 1974, fui morar no Pará e no primeiro dia no ambulatório levei um susto: todas as crianças estavam desnutridas. “É sempre assim”, justificou uma enfermeira que trabalhava no lugar. Parti para um levantamento do número de crianças desnutridas naquele município, com 100 mil habitantes, e constatei que na área urbana 77,7% das crianças com menos de 5 anos sofriam de desnutrição. Os casos de desnutrição grave e moderada chegavam a 33% e, na época, não existia nenhum programa de suplementação alimentar. A partir desses números, com o apoio do voluntariado da LBA, montamos 13 creches, com um total de 390 crianças desnutridas, numa tentativa de reverter esta situação. Ainda assim, a verba para alimentação era muito pequena e as crianças continuavam a sofrer com a doença, cujo principal sintoma era a diarréia. Fiquei muito preocupada, pensei em fechar o local, pois vi que estava ajudando pouco e expondo as crianças a um risco maior de contaminação, dada a quantidade de diarréia na creche. A situação era desesperadora quando fui visitar uma plantação de pimenta-do-reino e vi um pozinho no pé da pimenteira e perguntei o que era aquilo. “Isso aqui é farelo de arroz que ninguém usa. É bom para a planta crescer e se fortalecer”, disseram. Fui pesquisar na tabela de composição de alimentos e vi que era uma grande fonte de minerais e vitaminas. Como se tratava de um produto inofensivo, mas muito rico nutricionalmente, testei o farelo num almoço com minha família e todos aprovaram o sabor. Comecei a usar nas refeições da creche e, em três dias, acabaram os casos de diarréia. Depois de um mês, as crianças estavam tão diferentes... Pareciam flores desabrochando. Tudo começou assim.
2) RS – Quais as principais vantagens da multimistura?
CB – Hoje a multimistura é composta dos seguintes alimentos: farelo de arroz e/ou trigo, pó de folhas verdes (principalmente da mandioca, batata-doce ou abóbora, etc.), pó de sementes (gergelim, linhaça, semente de abóbora, melancia, melão ou girassol, etc.) e pó de casca de ovo. É um poderoso concentrado de minerais e vitaminas. Toda a metabolização de carboidratos, proteínas e gorduras depende de minerais e vitaminas para serem aproveitados pelo organismo. Com a multimistura, portanto, é possível maximizar o alimento disponível para a nutrição do corpo. A mudança acontece em questão de dias. Quanto mais grave a desnutrição e menor a faixa etária das crianças, melhor é a resposta ao tratamento com a multimistura. Posso dizer que numa média de três a quatro meses, a criança sai, totalmente, do estado de desnutrição. O melhor é que todos os componentes da multimistura estão disponíveis em qualquer lugar no mundo. A população sempre utiliza o que tem no local, basta aprender a técnica de sua preparação. Além disso, não custa caro implementar o programa. Só é preciso que algum técnico vá até o local pra formar multiplicadores e leve, com ele, o mínimo de material instrucional.
3) RS – Como a idéia se disseminou?
CB – Comecei a apresentar os resultados em congressos, simpósios. A Unicef levou muita gente para conhecer o projeto, inclusive o próprio representante da entidade no Brasil. Em 1983, enviamos duas pessoas do nosso projeto para oferecer treinamento à Pastoral da Criança, que estava começando a surgir. A Pastoral incorporou a idéia e, ao longo dos anos, conforme foi se expandindo por todo o país, a idéia foi indo junto. Praticamente todas as 20 mil comunidades atendidas pela Pastoral atualmente têm a multimistura. Várias outras Organizações Não-Governamentais, diversos municípios e estados adotaram a técnica, que também está presente em 12 países, como Estados Unidos, Angola, Moçambique, Timor Leste. Hoje é domínio público: aonde você vai tem gente usando farelo, as sementes, as folhas verdes e a casquinha de ovo. Belo Horizonte, por exemplo, está há nove anos usando a multimistura, consumindo uma média de mais de 340 toneladas.
4) RS – Na sua opinião, quais providências de maior emergência devem ser tomadas para solucionar a questão da fome, da subnutrição e desnutrição no país?
CB – Nutrição precisa ser trabalhada de duas principais maneiras. A primeira deve considerar a importância de prevenir o que chamamos de ‘origem fetal das doenças crônico-degenerativas’. A criança que nasce desnutrida, além de sofrer com todos os problemas comuns à desnutrição, tem maiores chances de ser diabética, hipertensa e ter doenças do coração na vida adulta. É preciso criar hábitos saudáveis, e não apenas encher a barriga do povo. É preciso fazer com que o povo aprenda a comer melhor dentro daquilo que pode e tem disponível – os elementos da multimistura, por exemplo, estão presentes em todos os cantos do país e são extremamente baratos. A segunda maneira deve considerar a existência dos ‘alimentos nutracêuticos funcionais’ ou alimentos inteligentes. São aqueles que podem não apenas manter a sua saúde, mas também previnem, retardam e curam doenças. Um exemplo: o ácido fólico pode evitar a ocorrência de fissura palatina. Imagine se esse elemento passasse a enriquecer a merenda escolar que é servida nas escolas – o Exército doa 300 mil refeições e o governo paga outras 40 milhões. Seria uma mudança significativa. Se nesse contingente fosse trabalhada a questão de se alimentar bem, a transformação seria incrível. Achocolatado, pão, açúcar – além de não serem saudáveis, custam caro. O leite líquido em crianças pequenas provoca microhemorragia intestinal e, por conseqüência, anemia. Se esses alimentos fossem substituídos por outros mais saudáveis e com base nos produtos que temos disponíveis, as crianças seriam mais saudáveis e o governo poderia aumentar a abrangência do programa, dada a economia que faria. Outro exemplo, um levantamento feito em outubro de 2002, mostrava que no café da manhã daquele mês gastava-se 35% do salário mínimo para alimentar seis pessoas com um pão com margarina e uma xícara de café-com-leite. Se fizesse um café da manhã com cuscuz ou polenta e apenas uma xícara de café, gastaria-se apenas 10% do salário mínimo. Hoje, se 10% da farinha de trigo consumida no país fosse trocada por polvilho de mandioca, seria feita uma economia de R$ 20 milhões em importação de trigo. Além disso, seriam gerados quase 80 mil empregos no campo em um ano. Eu pergunto: por que as pessoas comem tudo à base de trigo e leite quando há tanta alergia a essas substâncias? O governo deveria estimular as pessoas a usarem o que o país produz. Por que comer bolo de trigo sempre e não bolo de mandioca? Ou mandioca frita ao invés de batata frita? Com tais informações, os brasileiros fariam isso e economizariam muito, além de estarem se alimentando muito melhor.
5) RS – O que a senhora entende por Responsabilidade Social?
CB – Creio que, individualmente, todos têm que fazer sua parte – isso é responsabilidade social. O governo tem que dar instrumentos aos voluntários para executar o voluntariado. Se cada um de nós não tomar uma atitude, pode estar fazer mal para o mundo inteiro. As atitudes boas também ecoam da mesma maneira, só que beneficamente. Por isso a importância de estar bem informado, para tomar a atitude certa.
6) RS – Como a senhora avalia a atuação do governo FHC na busca de soluções para a questão nutricional brasileira?
CB – Fizeram coisas boas, mas perderam muitas oportunidades. Exemplo: o governo fez 700 mil cirurgias de catarata, mas não explicou como se previne a doença. Por outro lado, avançou muito na ampliação da merenda escolar, na questão da amamentação (passando o aleitamento exclusivo de quatro para seis meses) e na questão da imunização das crianças.
7) RS – Na sua opinião, de que forma o empresariado brasileiro pode contribuir para melhorar os problemas nutricionais brasileiros?
CB – O Sindicato da Construção Civil do Rio de Janeiro está usando há 12 anos ou mais multimistura nos canteiros de obras, com resultados incríveis: ela diminuiu a ocorrência de acidentes de trabalho, alcoolismo, doenças cardiovasculares, colesterol, diabetes e, é claro, as faltas por motivo de doença. Basta trabalhar as idéias de uma forma profissional, que o retorno será mais do que satisfatório para os empresários.