
Comida também é cultura, e no campo atual das idéias alimentares há uma fortíssima valorização do que é tradicional - tanto na forma de cozinhar e degustar, quanto no próprio modo de produzir e vender os alimentos.
O movimento Slow food, que celebra as formas tradicionais do bem comer, põe em prática essas idéias. Enquanto isso, pequenos comerciantes de alimentos orgânicos, produzidos de modo tradicional, vão se firmando no mercado. Vendem mais caro, porque não podem competir com a maioria dos alimentos industrializados, produzida em série com matéria-prima barata; mas a qualidade compensa.
Dois livros que não saem da minha mesa vão nessa linha: Nourishing Traditions, de Sally Fallon e Mary G. Enig, ainda sem tradução brasileira, e Comida de Verdade, de Nina Planck, Editora Arx. Ambos viram as costas para o politicamente correto, bem como para as dietas sem produtos animais, e mostram com todas as letras que a melhor nutrição é aquela que inclui um pouco de tudo.
E bota um pouco de tudo nisso. Folheando o primeiro, me deparo com um capítulo sobre as carnes internas, dos órgãos dos animais, que são as fontes mais ricas de nutrientes que alguém possa imaginar. Em seguida vem uma receita de miolo de boi.
Gente, fui criada comendo miolo. Quem vendia, na feira paulistana dos anos 1950, era o bucheiro, junto com fígado, língua, rins, bofe, tripas e outras delicadezas. O miolo era cuidadosamente lavado, aferventado durante alguns minutos, limpo de suas membranas e passado no espremedor de batatas; temperado ainda quente com azeite de oliva, sal, limão, pimenta-do-reino, salsa e cebolinha picadas; e ia para a geladeira.Chegava na mesa do almoço ou do jantar junto com uma cestinha de pão fresco, para se comer de entrada - coisinhas turcas deliciosas da minha mãe. Eu adorava. E o resto da família também.
Mas quando menciono miolo, a maioria torce a cara. Tudo bem, eu mesma nunca comi rins e dobradinha, muito menos sarapatel, buchada de bode e testículos de boi, mas entendo que as pessoas comam e gostem. Por que não entendem comer miolo? Fica com a inteligência do boi, dizem.
No livro da Nina Planck, de repente dou de cara com outra das gracinhas da minha mãe: sopa de vegetais com osso de tutano. Quem nunca comeu tutano não pode imaginar o sabor dessa gordurinha levíssima, adocicada, que sai do meio dos ossos das pernas do boi e vai para cima de uma torrada. É o mesmo tutano do ossobuco, outra especialidade materna, esta com carne de músculo em volta.
Minha mãe cozinhava assim porque minha avó cozinhava assim, e antes dela minha bisavó e a bisavó dela. É tradição de família. Eu, quando ponho um osso na sopa, estou pondo muito mais do que isso na minha vida.
***
Um dia, passando os olhos pela barraca do peixe, notei duas grandes ovas amarelas. São de tainha?, perguntei. Eram.
Levei para casa. Lavei, limpei minimamente e fiz o resto lembrando dos gestos de minha mãe: sal no prato, as ovas, sal por cima, tudo inclinado para a água escorrer. Deu certíssimo, a ova ficou salgada em oito horas. Retirei o excesso e deixei secar.
O resultado foi uma iguaria das mais finas, característica da Sicília, da Grécia, da Turquia, a
bottarga, ou
boutargue, que se desmancha com miolo de pão e temperos e vira patê –
tarama salata – ou se come em fatias finíssimas, sobre uma torrada, com gotinhas de limão.
Maio e junho são os meses em que as ovas costumam aparecer na feira, se você quiser fazer em casa. Se não, japoneses também são adeptos, e com sorte se encontram ovas secas salgadas, de tainha ou de atum, nas lojas especializadas.
A preço de ouro. Ou melhor, de antiguidade.
Nada mais justo.
Imagem emprestada do site bienmanger.com , que vende ovas para o mundo.